Disritmia
maçãs murchas e amargas
São Paulo, novembro
Querido,
Está frio como somente essa cidade sabe ser. Apesar do verão que se aproxima. Apesar do ano que acaba. Apesar do calor insuportável que fez poucas semanas atrás. A noite estava fria e eu não consegui dormir. Eu não consigo dormir há tempos. Apesar dos incontáveis e tóxicos remédios que eu insisto em tomar. Eles só me deixam grogue e a tornam a experiência da madrugada ainda mais perturbadora. A luz do pisca pisca (precoce?) do vizinho formava desenhos fantasmagóricos na minha parede. A única luz tolerável era a da geladeira, que eu abri e fechei infinitas vezes em busca de nada. Só havia ovos, água, queijo com viabilidade questionável e maçãs murchas. Eu sinto fome de madrugada, mas não comeria nada. Porque os remédios tornam tudo intragável, amargo. Eu quero ir embora. Cigarros queimam mas não aquecem. Cigarros seriam fumados em vão. Enquanto amanhecia eu pensava em você. Em todas as nossas palavras irresponsáveis que um dia vão nos machucar.
Eu sinto sua falta.
Uma para ler, ler o dia inteiro, jornais, revistas, sites, dossiês. Seria o eu-atualizado, viciada em jornalismo e enciclopédias iluministas.
Outra para os exercícios diários de física, química e matemática! Toda a pouca lógica que tenho em uma pessoa só, sem a mínima interferência confusa da minha mente desconexa aos números, teria resultados exatos para x e me pouparia da frustração incômoda causada pela impaciência e preguiça matemática.
carta ao médico, número 1
É difícil saber por onde começar. A gente pode pular toda a conversa fiada e ir para o que importa: a culpa é toda dos meus pais, não é assim que acontece? Não é nisso que se baseia toda a sua ciência? Seria fácil somente culpá-los. Poderia ser, inclusive, a coisa certa a se fazer. Mas não adiantaria nada. Não agora. Talvez anos atrás. Eu sempre esperei que alguém dissesse o quanto os dois eram imbecis. Mas eu sinto que as pessoas somente me culpavam, diziam que eu era problemática, difícil, rebelde e, o que mais me doía, ingrata. Hoje em dia eu sei que seria inútil até mesmo se alguém falasse algo a eles. Dificilmente eles mudariam, pois estavam condenados a ser quem são. Como todos nós, talvez. Agora, eu só quero saber o que posso fazer para mudar. E, para isso, eu acho que preciso descobrir quem eu sou.
E para descobrir quem eu sou, honestamente, não sei o quanto devo voltar ao passado, ou o quanto devo projetar o futuro, tampouco o quanto preciso descrever o presente. O que somos, doutor? Somos seres que vivem em três parcelas de tempo distintas que se influenciam simultaneamente? Seria isso uma ficção científica barata, com paradoxos difíceis de delimitar?
Os últimos anos foram estranhos. Nem gosto de pensar que foram quase dez. Eu gostaria de dividir minha vida em três partes. A primeira, vou chamar de Passado, que vai do nascimento até os dezessete anos. A segunda, Idade Média, em que estou agora. E a terceira, o Renascimento, que é o que eu espero que aconteça.
Dez anos é muito tempo para colocar tudo numa coisa só. Assim como os dez séculos medievais. Mas há algo em comum em tudo isso, a estranheza. Eu não sei quem fui nos últimos anos. Ao mesmo tempo me sinto vivendo na sombra dos outros, me achando fraca demais, tonta demais, eu também sinto que fui esperta o bastante para sobreviver a várias merdas. O que não faltou, doutor, foram merdas. E eu não sei se sou capaz de contá-las agora, assim, tudo de uma vez. Eu preciso de tempo, ou eu não vou suportar.
E esse é motivo pelo qual eu estou aqui hoje. Porque talvez eu não esteja muito bem da cabeça. Doutor, eu acredito que a mente humana é capaz de suportar uma quantidade infinita de merdas e continuar o que chamamos de saudável. Mas até eu, que acho um grande exagero o consumo de remédios, sinto que posso estar mal da cabeça. Não é tristeza, doutor. A tristeza me diverte. Como todos nós, talvez. A indiferença está próxima. É a tempestade que se aproxima. Mas dessa vez, eu sinto como se eu soubesse... dessa vez se eu mergulhar talvez eu não volte.
Estou aqui novamente, ouvindo as mesmas músicas de dez anos atrás, escrevendo no mesmo lugar de dez anos atrás. A parte mais assustadora não foi estar perdida em algum lugar dentro de mim. Doutor, a parte assustadora é que eu acho que estou me descobrindo agora.